Entrevista de Edgard Assis Carvalho publicada na Revista Filosofia – Ciência & Vida, 83, junho de 2013

Edgar Morin é, se dúvida, um dos intelectuais mais provocadores e relevantes da atualidade. Por esse motivo, ele é alvo do curso O pensamento de Edgar Morin – complexidade, integração e esperança, ministrado pelo professor Edgard de Assis Carvalho, tradutor das obras do filósofo no Brasil. As aulas, que vão até 13 de junho, na Associação Palas Athena, abordam a obra e a contribuição significativa de Morin para a humanidade. Entre os temas preferidos do antropólogo, sociólogo e filósofo francês destaca-se  a promoção de um mundo mais ético e justo, questão marcante a todo seu pensamento. Em sua trajetória, Morin integra diversas áreas do conhecimento para traçar os rumos das transformações indispensáveis nas esferas sociais, políticas e culturais. O curso tem como base algumas obras, entre elas A via para o futuro da humanidade, que analisa o tema tangenciando as relações sociais, a reforma da Educação, os problemas cotidianos e a necessidade da Ética em todas as dimensões humanas. Edgard de Assis Carvalho também é professor titular de Antropologia de Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), coordenador do Núcleo de Estudos da Complexidade (Complexus) e representante da Cátedra Itinerante da Unesco Edgar Morin. Possui trabalhos, livros, artigos, orientações de dissertações e teses na área de Antropologia Contemporânea e Antropologia dos Sistemas Complexos. Ele abora, para Filosofia, aspectos do curso e da obra de Edgar Morin.
CARVALHO: A obra é vasta demais e seu objetivo não pode ser reduzido à busca de um mundo mais ético e justo, pois a diversidade temática da obra é demasiado ampla. Existem questões de natureza filosófica e epistêmica a serem levadas em conta e isso, desde seu primeiro livro – O ano Zero da Alemanha –, publicado em 1946. O conjunto totaliza mais de 65 livros, sem falar nos comentadores e decifradores de suas ideias e proposições, dentre as quais me incluo. Fala-se muito do pensamento complexo e poucos são aqueles que se dedicam ao estudo dos seis volumes de O método, publicados entre 1977 e 2004. A Ética está presente na obra como um todo. Envolve o entrelaçamento, ao mesmo tempo, complementar e antagônico da Ética em si, da sociedade, da espécie. Em Rumo ao abismo? há uma afirmação fundamental: diante de um sistema-mundo repleto de contradições só existem duas possibilidade: a autodestruição ou a metamorfose. Claro que Edgar Morin aposta na segunda. Sabemos que o futuro nunca está dado de antemão e cabe a todos nós recriá-lo a todo momento, para que crises e conflitos possam ser superados.
CARVALHO: A intolerância é visível em toda parte, principalmente nas condições atuais da mundialização. Parece que o mundo perdeu a esperança e o que vale agora é insignificância das relações humanas. O mal-estar na civilização diagnosticado por Freud em 1930 ampliou-se de modo incontrolado. Reverter esse processo requer a reativação do princípio-esperança, uma ideia original de Ernst Bloch retomada em recente ensaio de Edgar Morin, escrito com Stéphane Hessel, intitulado O caminho da esperança. Falecido nesse ano, Hessel foi um dos subscritores da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e o autor de um livro que correu o mundo intitulado Indignai-vos. O Brasil não se deu conta da importância do livro. Penso que Boston pode ser visto nesse prisma. O núcleo do poder americano converte-se no alvo preferencial dessa confrontação em que a violência mimética se amplia. Basta olhar a safra cinematográfica atual – Homem de Ferro 3, Invasão à Casa Branca, Chamada de Emergência – para perceber a fragilidade do poder e a inconsistência da Política. Desde O cinema ou o homem imaginário, publicado em 1956, Morin havia diagnosticado a força cognitiva das imagens cinematográficas. Os filmes acima referidos são exemplos disso, sintomas de algo mais profundo, inconsciente, que rege a Biopolítica contemporânea. Costuma-se dizer que sociedades que perderam o sentido dos valores universais apelam para um vale-tudo particularista, que exibe o rompimento dos pactos sociais que regem as culturas humanas.
CARVALHO: No final do segundo mandato de François Mitterand, o então ministro da Educação nacional, Claude Allègre, solicitou a Edgar Morin que coordenasse o projeto da reforma do ensino médio. Em vez de começar por uma mera recomposição de currículos, foi proposto um simpósio intitulado A religação dos saberes, em que seriam discutidos metatemas: natureza, vida, terra, homem, história, conhecimento, cultura adolescentes. A partir daí foi construído um texto-base bastante utilizado no Brasil, Os sete saberes necessários à Educação do futuro – que não são disciplinas, mas pontos de partida que deveriam reger a totalidade curricular: erro, incerteza, totalidade, Ética. Claro que a rejeição corporativa e sindical impediu a implantação da reforma que foi abortada nos governos posteriores. Em Fortaleza, em 2011, com a presença de Edgar Morin, aconteceu um grande encontro intitulado Os sete saberes necessários à Educação do presente, em que foram analisadas as ressonâncias atuais do projeto original aqui no Brasil. Como resultado, elaborou-se a Carta da Fortaleza, na qual se reafirmam as atitudes transdisciplinares, que devem reger o ensino e a pesquisa, e isso em todos os níveis.
CARVALHO: Cultura filosófica e cultura científica são dois contingentes a serem articulados com urgência, assim como a cultura dita científica e a cultura das humanidade. Todas as ciências são humanas. Em 1959, Charles Snow publicou importante livro, originalmente um programa radiofônico: As duas culturas, traduzidos no Brasil apenas em 1993. Nele, Snow afirma que nenhuma sociedade poderá pensar-se com sabedoria se não efetivar a religação dessas culturas. Afinal, Ciência, Filosofia, Arte são empreendimentos que tentam desvendar a condição humana em todas as suas dimensões. Não se trata de multiculturalismo, como consideram alguns, mas a fragmentação do pensamento é algo a ser ultrapassado. Sociedade, Educação, vida intelectual constituem uma totalidade e, como sabemos, a totalidade nunca se reduz à mera soma das partes. Totalidade são sistemas abertos repletos de ordens, desordens, bifurcações, reorganizações, que, por vezes, redefinem as trajetórias dos sistemas vivos.
CARVALHO: Em 1953, Heidegger proferiu uma conferência intitulada A questão da técnica, posteriormente publicada em livro sob o título Ensaios e conferências. A edição brasileira é de 2002. Nesse pronunciamento, Heidegger reitera que, em si mesma, a técnica não é bom e nem má, mas que a sua utilização depende dos agentes que a criam e manipulam. O mundo contemporâneo se encontra submetido a um quadrimotor constituído pela ciência, pela técnica, pela indústria, pelo Estado, responsável por muitas desigualdades, exclusões, prepotências. Por vezes, os cientistas aderem ao poder, à lógica da convenção – para utilizar uma expressão de Edward Said, em seu livroRepresentações do intelectual, um conjunto de conferência de 1993, patrocinadas pela BBC, e, posteriormente, reunidas em livro publicado no Brasil em 2005, dois anos após sua morte. Não se trata de diabolizar a técnica. O mundo hipertécnico precisa ser colocado em seu devido lugar, como menos prometeísmo. Em 2011, Morin elaborou uma proposta, que foi discutida no Rio de Janeiro, intitulada Para um pensamento do Sul. Organizada pelo Sesc, ela foi discutida em três frentes entrelaçadas: Educação, Cultura, Economia. Entenda-se que o Sul não é uma noção geográfica, mas uma contracorrente capaz de se defrontar com a hegemonia tecnológica do Norte. Existem vários suis e nortes. É necessário incorporar as heranças culturais consideradas tradicionais e reinseri-las éticamente nos fluxos e circuitos da mundialização. O Encontro do Rio gerou um documento e um apelo dirigido a governos e instituições, que deveria ser levado em conta para que o pensamento complexo deixe de ser considerado uma utopia sem fundamento. Complexidade é tecer junto, religar saberes, implodir dualidades, quaisquer que elas sejam.
CARVALHO: Há uma ponderação de Edgar Morin feita em Meus demônios, texto de 1994, publicado no Brasil em 1997. Não se trata de um perfil autobiográfico, como consideram alguns. Nesse livro, como em vários outros – Meu caminho, Minha esquerda, Meus filósofos, Minha Paris, Meu cinema –, esses dois últimos ainda inéditos no Brasil, há algo de suma importância: a indissociabilidade entre vida e ideias, que deve presidir a trajetória de qualquer sapiens-demens. Nem sempre convivem harmonicamente. Há recalques, pulsões, desejos. A objetividade da Ciência jamais conseguirá capturá-los integralmente, isso pelo fato de que, a todo tempo, somos assolados pelas desavenças e desencontros entre os sujeitos da enunciação e aquilo que enunciam. As atribuições do intelectual devem se situar nesse diapasão. O intelectual, Morin reitera, é aquele que ousa sair da sua competência disciplinar para refletir sobre os problemas mais amplos da cultura, esse vasto patrimônio criado por nós e para nós. Temos de ser competentes em nossa área de pertencimento, mas poder sair dela e contribuir para a preservação de nossa Terra-Pátria – título, aliás, de um de seus livros, publicados originalmente em 1993, traduzido no Brasil em 1996.