Da crise ecológica ao pensamento complexo

Edgard de Assis Carvalho analisa a Laudato Si’ e estabelece as relações entre o documento apostólico e o pensamento complexo de Edgar Morin

Por: Ricardo Machado

Em uma ecologia integral não há centro nem periferia, há relações. Vivemos um período ainda muito marcadamente moderno, sobretudo se considerarmos a compartimentação dos conhecimentos, resultado de um processo cartesiano de intensa disciplinarização dos conhecimentos. Na prática, esta racionalidade nos leva àquilo que Bergoglio chama, na Laudato Si’, de Crise Ecológica e, para tanto, sugere a perspectiva da Ecologia Integral.

O ponto de vista religioso apresentado na Encíclica encontra guarida na ciência naquilo que Edgar Morin chama de “pensamento complexo”. “Religar ciências, espiritualidades, artes, propor vias para o futuro da Terra-Pátria, restaurar a Ética, construir processos educativos que superem as fragmentações disciplinares são os objetivos últimos do pensamento complexo”, explica o professor e pesquisador Edgard de Assis Carvalho, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Francisco afirma que é preciso revigorar a ideia de que somos uma família humana e que o local e o global são faces de uma mesma moeda. A Ecologia religa necessariamente humanidade e animalidade, pois tudo isso está interconectado numa espécie de síntese sem síntese”, frisa.

Descolada de uma ideia integral, a racionalidade moderna elevou o antropocentrismo ao grau máximo de suas possibilidades técnicas comandadas por uma ideia de poder soberano. “O antropocentrismo é expressão máxima disso. O homem não é centro de nada. Essa cultura do narcisismo amplia intolerâncias, guerras, extermínios. A natureza não existe para ser submetida ao homem. A relação homem-natureza é de coautoria, e não de dominação ou submissão”, avalia. “O racionalismo, a racionalidade, a racionalização elegeram o homem como todo-poderoso e cimentaram a ideia de que a natureza existe para ser dominada e submetida por ele. Se a ideia do poder de Deus implica uma subjetividade absoluta, o poder do Homem expõe uma subjetividade relativa, pois somos, ao mesmo tempo, iguais em gênero e espécie e diferentes em culturas e especificidades”, complementa.

Edgard de Assis Carvalho é graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, doutor em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, pós-doutor pela Ecole des Hautes Études e Sciences Sociales – EHESS, na França, e livre docente pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp. É professor titular de Antropologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, e representante brasileiro da Cátedra Itinerante Unesco Edgar Morin – Ciuem. É um dos autores de Cultura e pensamento complexo (Natal: EDUFRN, 2009). De suas obras, destacamos: Ética, solidariedade e complexidade (São Paulo: Palas Athena, 1998), Edgar Morin: em busca dos fundamentos perdidos. Textos sobre o marxismo (Porto Alegre: Editora Sulina, 2002) e Cultura e Pensamento complexo (Porto Alegre: Sulina, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que relações se podem estabelecer entre a Laudato Si’ e o paradigma da complexidade de Edgar Morin ?

Edgard de Assis Carvalho – Laudato Si’ tem uma estrutura auspiciosa. Compõe-se de 246 tópicos distribuídos em seis capítulos interligados, cuja característica não linear leva o leitor aos dilemas, contradições, aporias e utopias da contemporaneidade. Há capítulos que explicitam o evangelho da criação, outros que investem mais nas raízes da crise generalizada dos ecossistemas. O capítulo 4 — Uma ecologia integral — é conceitual, teórico, explicita as condições do bem viver, da justiça, da ética. Os dois capítulos finais são propositivos, investem no diálogo intercultural, no reconhecimento, na colaboração das culturas, na religação entre espiritualidades, principalmente a cristã, as ciências, as artes. O pensamento complexo — que prefiro não chamar de paradigma, pois um paradigma é sempre um dispositivo com regras, preceitos, consensualidades — é sempre marcado pelo princípio da incerteza racional que envolve uma postura de descentramento do sujeito e sua reinserção na teia da vida. As espiritualidades em geral — a cristã inclusive — são formas cognitivas básicas de humanos de todos os tempos. O iluminismo consagrou as luzes da razão considerando que a via racional era o único acesso possível ao entendimento. A tradição judaico-cristã incumbiu-se do resto. Religar ciências, espiritualidades, artes, propor vias para o futuro da Terra-Pátria, restaurar a Ética, construir processos educativos que superem as fragmentações disciplinares são os objetivos últimos do pensamento complexo. Com mais de 2.500 páginas, os seis volumes de O Método — A natureza da natureza, A vida da vida, O conhecimento do conhecimento, As ideias, A humanidade da humanidade, Ética — explicitam esse metaponto de vista (Porto Alegre: Sulina, 2005).

IHU On-Line – Como o senhor interpreta o conceito de Ecologia Integral trazido por Bergoglio?

Edgard de Assis Carvalho – O conceito de Ecologia integral integra o homem na natureza, a natureza da química da vida. No Capítulo 1 da Laudato Si’ — O que está acontecendo com a nossa casa — há uma constatação que considero crucial. Sofremos no corpo e na mente os efeitos da ‘globalização da indiferença’, do mal-estar na civilização. Francisco afirma que é preciso revigorar a ideia de que somos uma família humana e que o local e o global são faces de uma mesma moeda. A Ecologia religa necessariamente humanidade e animalidade, pois tudo isso está interconectado numa espécie de síntese sem síntese. A sustentabilidade dos ecossistemas requer novas formas de regulação das políticas públicas que se preocupem com as futuras gerações.

IHU On-Line – De que forma os processos históricos foram esfacelando a ideia da complexidade humana? O que isso tem a ver com as dinâmicas que resultam no tecnocentrismo?

Edgard de Assis Carvalho – O tecnocentrismo é a expressão máxima do quadrimotor — ciência, técnica, indústria, Estado — que comanda os dispositivos da realidade líquida em que vivemos. Em Rumo ao abismo (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007), que reúne um conjunto de pronunciamentos de Edgar Morin em jornais, conferências, está contida a ideia de que, para sair da crise geral — e não apenas da ecológica — é necessário mudar o paradigma. Desde Heidegger, sabemos que, em si mesma, a técnica não é boa nem má, pois tudo depende daqueles que fazem uso dela. Um acontecimento-mundo expressa essa ambivalência: a destruição de Hiroshima e Nagasaki, em seis e nove de agosto de 1945. Por que acontecimento-mundo? Porque pela primeira vez na história constatou-se que um artefato técnico, produto de um desenvolvimento exponencial da Física, resultou na destruição em massa de homens, cidades, ecossistemas. Qualquer forma de centrismo é um prejuízo real e simbólico para a vida. O antropocentrismo é expressão máxima disso. O homem não é centro de nada. Essa cultura do narcisismo amplia intolerâncias, guerras, extermínios. A natureza não existe para ser submetida ao homem. A relação homem-natureza é de coautoria, e não de dominação ou submissão.

IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre o conceito de “homem” abordado por Morin, que o percebe como uma tríade — indivíduo, sociedade, espécie —, e a ideia do Deus trino da Encíclica? Qual a questão de fundo que está por trás desta argumentação?

Edgard de Assis Carvalho – O homo sapiens sapiens demens contém a ideia de que não somos apenas racionais. Esse duplo sapiens implica assumir que, no mundo animal, alguma forma de sapientalidade já existe, principalmente no caso dos primatas não humanos. Esse é o sentido trino da ideia de homem: ele é indivíduo-sujeito, traz consigo uma longa trajetória onto e filogenética; ao mesmo tempo é sociedade, pois sempre paga um preço muito alto para viver com os outros, é espécie — hominídea — que lhe confere uma especificidade no processo de evolução da vida. A questão de fundo a que você se refere traduz o esgotamento do raciocínio binário consagrado pela visão cartesiana. Assumir os mistérios da trindade é situar-se num paradigma indiciário que não diaboliza as luzes da razão, mas acredita que, sob e sobre elas, existem sombras, mistérios, loucuras, imanências, transcendências. Oriunda dos pressupostos da espiritualidade cristã, a ideia do Deus Trino — pai, filho, espírito — é, simultaneamente oposta e complementar à tríade indivíduo, sociedade, espécie. Por isso, é necessário colocá-las em circuito dialógico, recursivo, hologramático. Como está posto no capítulo seis da Laudato Si’, essa via “indica-nos o desafio de tentar ler a realidade em chave trinitária”.

IHU On-Line – De que maneira a Economia, enquanto ciência, coloca-se em uma posição deificada com relação às questões contemporâneas?

Edgard de Assis Carvalho – Vistos isoladamente, os processos econômicos contemporâneos que minimizam meios para maximizar fins sempre conduzem à expansão das desigualdades por toda a face da Terra. Basta olhar o que ocorre na América Latina, na Europa — o exemplo da Grécia é paradigmático a esse respeito —, nos Estados Unidos. A Economia reduz o homem a uma engrenagem descartável empenhada na rentabilidade imediata, no crescimento econômico, nos rendimentos do capital. Em decorrência disso ampliam-se as desigualdades, a pobreza, a concentração das rendas nas mãos de poucos. A Laudato Si’ elenca as sucessivas Declarações, apelos, conferências que, desde os anos 1970, alertam para os perigos iminentes que essa lógica impõe ao planeta. Sabemos todos que a implementação dessas recomendações por parte dos Estados nacionais e blocos econômicos é frágil, tímida, ineficaz. Os ecossistemas vivos correm o sério risco de destruição nas próximas décadas, se algo não for posto em prática de imediato.

IHU On-Line – Em que medida essa postura científica que ignora os efeitos (colaterais e previstos) de suas ações é subsidiária da racionalidade judaico-cristã, que elege um ser todo poderoso, imanentizada pelos humanos?

Edgard de Assis Carvalho – O racionalismo, a racionalidade, a racionalização elegeram o homem como todo-poderoso e cimentaram a ideia de que a natureza existe para ser dominada e submetida por ele. Se a ideia do poder de Deus implica uma subjetividade absoluta, o poder do Homem expõe uma subjetividade relativa, pois somos, ao mesmo tempo, iguais em gênero e espécie e diferentes em culturas e especificidades. Em 2012, houve um encontro no Rio de Janeiro patrocinado pelo SESC nacional. Edgar Morin apresentou um texto-base com um curioso título: Para um pensamento do Sul (Rio de Janeiro: SESC, Departamento Nacional, 2011). Não foi nada fácil deixar de conceber esse Sul como uma entidade geográfica. Existem Nortes e Suis. Baseado na irreversibilidade da tecnociência, do cálculo, do lucro a qualquer preço, o pensamento hegemônico do Norte consagra a ideia do homo economicus e deixa de lado o amor, a dádiva, a comunhão, a espiritualidade, a convivialidade, a brincadeira. A degradação das solidariedades tradicionais e o reconhecimento do todo do qual fazemos parte foram deixados de lado. A universalidade que nos comanda exige um reaprendizado constante. Somos todos filhos do Céu, da Terra e, se quisermos, de Deus também. Temos de assumir essa tríade universal, dialogar permanentemente com ela, e trabalhar seu lado contraditorial, complementar, indeterminado.

IHU On-Line – Como a fragmentação e a compartimentação dos conhecimentos nos conduziu à Crise Ecológica em sentido conceitual?

Edgard de Assis Carvalho – Em uma das epígrafes de Ciência com consciência (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005 – 8ª Edição), Edgar Morin reitera que a fragmentação é a barbárie do pensamento, e a complexidade a civilização das ideias. Essa barbárie se expressa no fato de que a figura do especialista e do expert deve ser vista com reservas. Precisamos de um tipo de especialista que não se contenta mais com os contornos sitiados da sua érea, mas expande suas argumentações para além dela. Daí decorre a crise geral dos saberes que presenciamos hoje. Oriunda do grego, a palavra crise expressa corte, supressão, mas também potência para tomar outros rumos, ou seja, construir vias alternativas para o futuro dos sistemas vivos. O século XXI não conseguirá concretizar a crença de que vivemos hoje uma sociedade do conhecimento se não virarmos a página dos centrismos. Precisamos de vias alternativas que acabem por desembocar numa Via para o futuro da humanidade (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011), título este de um livro de Edgar Morin de 2011.

IHU On-Line – Do que se trata a ética do pensamento de Morin? Como esta perspectiva dialoga com a ideia da Ecologia Integral de Francisco?

Edgard de Assis Carvalho – O volume seis de O Método, de 2014, retorna aos dilemas da era planetária. A terra-pátria é a comunidade de destino que fornece as bases éticas para a humanidade, assentadas em três princípios básicos: solidariedade, responsabilidade, reconhecimento. Todo ato ético implica a religação com o outro, com os seus, com a comunidade, com a humanidade, com o cosmo. Por isso, a ética de si — autoética —, a ética do outro — socioética — e a ética das espécies — antropoética — constituem uma tríade indissociável para a instauração da democracia cognitiva, da política de civilização, da restauração da esperança. Sistematizada no capítulo quatro da Encíclica, a ideia da Ecologia integral, fundada no bem viver, no bem comum, na justiça intergeneracional, parte da crítica aos antropocentrismos modernos e reitera que “as espécies vivas formam uma trama que nunca acabaremos de individuar e compreender. A natureza não pode ser apartada de nós. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos”.

Uma ecologia verdadeiramente humana, ou seja, uma ecologia geral dos ecossistemas vivos, pode ser obra de um Deus criador e também de homens empenhados em fortalecer os laços conviviais em prol de uma comunidade de destino sustentável para todos. Dialogar com essas posturas pode trazer ressonâncias no ensino e na pesquisa. É claro que, sem excluir o ensino dito laico, as Pontifícias Universidades Católicas têm um importante papel a cumprir ao promover, de fato, o diálogo entre os saberes culturais, quaisquer que sejam eles, sem qualquer tipo de rejeição ou censura.

IHU On-Line – Como promover as religações dos saberes? Qual a importância desta perspectiva para os desafios do século XXI?

Edgard de Assis Carvalho – Promover a religação requer uma reforma global dos educadores. Como Marx já afirmara, reforma do ensino e dos educadores têm de caminhar juntas. Centros de difusão de saberes universais, as Universidades enfatizam a especialização, estimulam a fragmentação, aderem acriticamente a sistemas de avaliação e controle que aceleram o produtivismo e a expertise. O fosso entre cultura científica e humanista se amplia a cada dia e a formação não leva em conta a religação. São inúmeros os projetos que tentam mudar de caminho. Empenhado em reformar o ensino médio na França, em 1998, Morin defendeu a religação como forma de regeneração de um humanismo não antropocêntrico. Competências tecnocientíficas são fundamentais, mas devem ser inseridas em contextos mais amplos. Os sete saberes necessários à educação do futuro (São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2001) teve ampla divulgação no Brasil, provocou uma certa mobilização, mas a Universidade não discutiu o texto como deveria, a não ser nas brechas criadas por alguns núcleos e grupos de pesquisa.

Em 2010, em Fortaleza, Morin presidiu a Conferência internacional intitulada Os sete saberes necessários à educação do presente. Resultado do encontro, a Carta de Fortaleza fez um apelo dirigido a instituições estatais, privadas, confessionais, instando-as a repensar seus modelos de ensino e pesquisa. Em 2014, Edgar Morin publicou Ensinar a viver – manifesto para mudar a educação. Na conclusão é mais uma vez reiterada a ideia de que “o objetivo da reforma de educação é o bem viver de cada um e de todos, principalmente de professores e alunos. É preciso regenerar Eros, pois ‘tudo aquilo que não se regenera, se degenera’. Essa frase serve de epígrafe a mais essa reflexão baseada na esperança de uma política de civilização para a nossa casa, termo usado pelo Papa Francisco que sempre sugere ‘a riqueza do pluralismo’ como antídoto à tentação ditatorial”.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Edgard de Assis Carvalho – A leitura sistemática da Laudato Si’ demonstra que toda vez que a religação é posta em marcha, o conhecimento se amplia de forma democrática, complexa, filosófica, religiosa.

Leia mais…

  • A revogação do antropocentrismo e a aquisição de saberes transversais. Entrevista com Edgard de Assis Carvalho publicada na IHU On-Line, edição 402, de 10-09-2012.