Diversão e Arte? Não, Rolezinho

Professora Vivian Ap. Blaso S. S. César, Doutoranda e Mestre em Ciências Sociais Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Diretora da Agência de Relações Públicas Conversa Sustentável e  autora do Blog Conversa Sustentável. 

 A partir dos anos 90 até os dias de hoje, São Paulo passou por períodos de grandes mudanças, pois na região metropolitana houve uma desconcentração das atividades industriais e uma reestruturação das atividades terciárias, consequência da globalização. 
A metrópole transformou-se e ficou conhecida como capital dos serviços. Com isso, a segregação espacial tornou-se evidente, e os processos de favelização e o adensamento das populações de baixa renda concentraram-se nas periferias da cidade. 
Vamos destacar alguns fatores que foram responsáveis pela mudança do perfil da cidade, articulados ao setor imobiliário, que é considerado um dos agentes indutores dos processos de concepção e transformações das cidades:
  • A competitividade do setor na construção civil e o “esgotamento do modelo de financiamento à produção” – as construtoras e incorporadoras passaram a ser agentes de financiamento aos consumidores;
  • Abertura econômica e reorganização da economia em bloco;
  • Mudança nas relações entre capital e trabalho;
  • Mudanças no ambiente competitivo global;
  • Mudanças no perfil do consumidor brasileiro;
  • Novas formas de financiamento estavam ligadas às necessidades de retorno e margens adequadas para assegurar a atratividade do mercado;
  • Novos parâmetros de projeto e execução das obras – o Estado também passou a ser agente financiador da construção civil;
  • Número elevado de competidores na produção – em função da concorrência os preços são impostos pela demanda;
  • Integração entre todos os agentes do setor.

Nesse contexto, os shoppings centers foram concebidos para garantir às elites um local privilegiado para o consumo. Promessas de segurança, conforto, lazer, como explicado por Tereza Caldeira e ratificado por Zygmunt Bauman em seu livro Confiança e medo na cidade, mostram-nos como a relação centro/periferia provocou uma tensão que colocou a classe média em risco de acabar vítima de um processo que não conhece e de perder o “bem-estar” conquistado no decorrer das últimas décadas. 
Essa dinâmica estrutural da ocupação das cidades e a forma como as cidades montam e desmontam seus espaços de elite, excluindo para as periferias as populações menos privilegiadas, acabam gerando conflitos e a segregação. 
Os shoppings centers atendem à nova proposta estética de segurança para as cidades globais, pois elas pressupõem certa vigilância. Segundo Bauman, “as cidades contemporâneas são campos de batalha, nos quais os poderes  globais e os sentidos e identidades tenazmente locais se encontram, se confrontam e lutam tentando chegar a uma solução satisfatória ou pelo menos aceitável para esse conflito: um modo de convivência que espera-se possa equivaler a uma paz duradoura, mas em geral se revela antes um armistício, uma trégua útil para reparar as defesas abatidas e reorganizar as unidades de combate. É esse confronto geral, e não algum fator particular, que aciona e orienta a dinâmica da cidade na modernidade líquida – de todas as cidades, sem sobra de dúvida, embora não de todas elas no mesmo grau” (Bauman, p. 35, 2005).

Os “rolezinhos” têm chamado a atenção da sociedade,  incomodado as elites tirado os dirigentes dos shoppings centers da zona de conforto, e o medo desse novo fenômeno na sociedade brasileira faz com que a polícia reaja com ações truculentas, violentas e opressoras.

Jovens considerados da “periferia” ocupam os templos do consumo. Conectados em redes sociais, articulam-se e manifestam seus desejos, vontades e pensamentos sobre marcas, produtos e serviços. Talvez eles tenham encontrado nessas redes um dos espaços mais democráticos e de mobilização, que vem mediando as manifestações e a luta por garantia de direitos e fazendo renascer o desejo por mais cidadania. 

Os jovens participantes dos “rolezinhos” também são consumidores. De acordo com o sociólogo e especialista em comportamento do consumidor Fábio Mariano Borges, “todos nós somos consumidores, mesmo quando não nos damos conta. Os diferentes papéis que desempenhamos na vida contemporânea nos colocam claramente como consumidores ou, então, como responsáveis por um tipo de consumo”. 

Os jovens praticantes dos “rolezinhos” são estrangeiros? 

“O estrangeiro é, por definição, alguém cuja ação é guiada por intenções que, no máximo, se pode tentar adivinhar, mas que ninguém jamais conhecerá com certeza. O estrangeiro é a variável desconhecida do cálculo das equações quando chega a hora de tomar decisões sobre o que fazer”  (Bauman, p. 37, 2005).

Não, os praticantes dos ”rolezinhos” são os vizinhos que estão separados por muros.

Refugiar-se em ilhas de segurança, como os condomínios fechados, é a prova de que nós consumidores estamos atendendo à demanda proposta para as novas cidades. 

“A cidade sempre teve relações com a sociedade no seu conjunto, com sua composição e seu funcionamento, com seus elementos constituintes (campo e agricultura, poder ofensivo e defensivo, poderes políticos, Estados etc.), com sua história. Portanto, ela muda quando muda a sociedade no seu conjunto. Portanto, as transformações da cidade não são os resultados passivos da globalidade social, de suas modificações. A cidade depende também e não menos essencialmente das relações de imediatice, das relações diretas entre pessoas e grupos que compõem a sociedade (famílias, corpos organizados, profissões e corporações etc.); ela não se reduz mais à organização dessas relações imediatas e diretas, nem suas metamorfoses se reduzem às mudanças nessas relações” (Henri Lefebvre, 1999).

Por isso, é necessário romper com a visão dualista entre centro e periferia e caminharmos na direção de um pensamento que religue esses polos, o jovem de elite e o jovem da periferia; as relações estão entrelaçadas, interconectadas e interdependentes e fazem parte de um mesmo fenômeno: “rolezinho”.

Encerro esta reflexão com a letra da música Comida, da banda Titãs, para lembrar que a nova classe C no Brasil deseja todo tipo de consumo e inserção na vida em redes. Provavelmente, os jovens dos “rolezinhos” não querem só comida; eles também querem diversão e arte.    

“A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer”  
Bibliografia 
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Trad.Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.  
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Trad. Sérgio Martins. Belo Horizonte:  Ed. UFMG, 1999.